Há mares e mar

De Vasco Costa Marques
Há mares e mar
e falta de ar
que quase dá
quase não dá
para voltar
Se de tal se salve
então talvez volte
para a casa que cai
p'ró caldo entornado
e para o bivalve
de lodo marado
que será a sorte
de uma outra morte
que não cause pânico
(tanto) e meta hospitais
senhoras de branco
medindo a tensão
dando a injecção
e maternalmente
e maquinalmente
dizendo "Tá bem?"
dizendo "Oh meu Deus!
Esqueci-me do soro"
e nós mortos já
não só mas também
dançando ao jará
revirando o olho
esticando o pernil
a bater a bota
escavando no esgoto
a subir ao céu
mas se for Inverno
ou se fizer frio
descendo ao Inferno
reino reinadio
que na papeleta
não marca dieta
nem põe restrição
ao tal et coetera

E esse nosso amigo?

De Vasco Costa Marques
-E esse nosso amigo?
-Esse nosso amigo...
é claro que...
com dinheiro é que...
e a mulher depois...
e parece que...
aguentou-se, sim...
se não fosse a...
não se sabe mas...
nosso amigo é.

Assinaturas e dedicatórias

Egito Gonçalves

Às vezes


"O fósforo na palha"
1970
Egito Gonçalves
Às  vezes
no coração da noite 
debruço-me sobre ti e interrogo 
a sombra da tua pele.

Pergunto com o olhar, depois 
os lábios movem-se, 
toco-te, todo um ciclo 
recomeça.

Que gesso  aprisiona  o sangue 
que nos morde? Que navio espero 
no final dos meus gestos?

O importante é saber 
onde  dói

Trabalhos

Carta de Egito Gonçalves para Vasco Costa Marques a propósito do lançamento do nº 1 de "Notícias do Bloqueio", (post anterior), dando conta dos trabalhos que em tempos sem blogues passava quem, por gosto ou militância, se metia a divulgar poesia.

Reuniste os estilhaços


"Notícias do bloqueio - fascículos de poesia"
1957
António José Fernandes
Os amantes verdadeiros
Reuniste os estilhaços 
da minha face partida

Ensinaste-me a frescura 
da respiração completa

Um rio de palavras novas 
fertiliza os meus desertos

Dissipaste o pesadelo 
acendendo os meus cigarros

Se o mundo fosse aceitável 
meu amor seria azul

A  paisagem  disponível 
é negra como o carvão

Amanhã serão alegres 
os amantes verdadeiros

Entreviram a face do sorriso

De Vasco Costa Marques
Entreviram a face do sorriso
O esqueleto e o sol da sua face
E a gota de sangue e os milhões de degraus
A maçã exemplar exibiu-se aos seus olhos

«E tenho amarrotado a tua roupa
Nas gares das estações
Com um corpo cansado e um ar estranho
Ao longo dos sentidos
Sempre o pão apressado ao fundo do crepúsculo
E as canções que são como
A humidade das casas»

Foi na leitaria de bairro antiquado


1972 - publicações d. quixote
Lawrence Ferlinghetti

Foi na leitaria de bairro antiquado
que pela primeira vez
me apaixonei
pela irrealidade
Os drops brilhavam na semiobscuridade
daquela tarde de setembro
Um gato andava em cima do balcão no meio dos chupa-chupas
e dos rebuçados
e das ena pá pastilhas elásticas

Lá fora as folhas caíam ao morrerem

O vento empurrava o sol para longe

Entrou a correr uma rapariga
Trazia o cabelo molhado da chuva
Os seus seios não conseguiam respirar na loja apertada

Lá fora as folhas caíam
e gritavam
Cedo de mais! Cedo de mais!

Iça a adriça

De Vasco Costa Marques
Iça a adriça
solta o catau
desfralda a bandeira
no mastro real

Sopra o vento leste
o que traz a nau
na coberta peste
no porão pardaus

Uma cigarra (obrigatório tropo!)


"Os dias íntimos"
1959
JOÃO JOSÉ COCHOFEL

Uma cigarra (obrigatório tropo!)
e o bulício do porto. 
Eu, com a filha pela mão, 
olhando absorto.

O vaivém das coisas e dos braços,
o ar, a cor e o som,
levam-lhe os olhos; a mim os pensamentos.
Da mão dela vem um calor bom,
e estes homens, curvados e baços,
entram pelo meu sonho de todos os momentos.

Bate-me de rijo o sol de Setembro, 
álacre e matinal. 
Esta mão na minha 
é o que a vida vale.

É o penhor humano 
de um mundo mais belo; 
de quanto fizermos 
por ganhá-lo e tê-lo.

Assinaturas e dedicatórias


Pedro Bandeira Freire

Note que o tempo foge-nos dos dedos,

De Vasco Costa Marques
Note que o tempo foge-nos dos dedos,
veloz como um foguete supersónico.
Não podemos perder os barcos gregos:
mantenha-se em contacto telefónico.

É de prever a curva do negócio:
conservas para Goa no embarque.
Sonde-me o Ministério e o Consórcio
New Manufactur's of Lorenzo Marques.

Prometa o que quiser, mas verbalmente.
Sinto que está a ser ultrapassado
e isso, meu caro, é a morte de um gerente.

Temos de ir mais depressa, mais depressa!
Veja se o Union Bank envia o delegado,
e ature-me esses tipos da Imprensa.

Assinaturas e dedicatórias

Uma cigarra (obrigatório tropo!)


"A invenção do amor e outros poemas"
1961
DANIEL FILIPE

Uma cigarra (obrigatório tropo!)
canta, em teus seios pousada.
Uma réstea de vida. Um quase nada.
Musical e alada
discípula de Esopo.

Bem no alto dos muros despovoados

De Vasco Costa Marques
Bem no alto dos muros despovoados
martelando tijolos com palavras
dormimos sobre as pedras sobre a erva
rala que se insinua nas ruínas

De dia erguemos sons metálicos As aves
debandam sobre os braços acenando
Surgem recantos doces entre escombros
uma cadeira um rosto manchas claras

Estruturas libertas nos envolvem
Um deserto de bruma infiltra impõe
uma língua amorosa contra os dentes

No pequeno quarto


"A cidade e a criação"
1973
PEDRO BANDEIRA FREIRE
Posters

No pequeno quarto
De paredes forradas à lá page
Estatutos do homem!    Che!
Make Love not War!    Mao!
O amor é um pássaro verde num
              campo azul  no  alto da madrugada!  Ho!
Direitos da criança! Zappa!
 Black Power!
Cava!
O poeta pela primeira vez 
envolvido pelo desejo de uma posse 
arruma rimas de rimas 
que o rumam a rumos românticos 
de que sente ter necessidade 
para excitar o apetite da interdição.

Torna-se então
Simples a questão.
Se o poema é bom — consagração!
Se é mau — sempre fica a intenção!

Eram duas nascentes separadas

De Vasco Costa Marques
Eram duas nascentes separadas
Só a terra comum e o desespero

«Quantos fantasmas indomados mordem
As raízes dos dias no teu seio
E silêncios em íntima harmonia
Bóiam nas águas lentas destas horas

Quanta trágica seiva derramada
Na penumbra das casas opressoras
Perdendo-se por frestas invisíveis

Onde o destino amiga onde a palavra
Onde as lágrimas sim lágrimas onde
Insólitas de raiva e compromisso
Na nossa mútua destroçada carne»

Assinaturas e dedicatórias

Em "Cântico do país emerso"

Não sou daqui. Mamei em peitos oceânicos


"Cântico do país emerso"
1961
NATÁLIA CORREIA

Não sou daqui.  Mamei em peitos oceânicos 
Minha mãe era ninfa meu pai chuva de lava 
Mestiça de onda e de enxofres vulcânicos 
Sou de mim mesma pomba húmida e brava

De mim mesma e de vós, ó Capitães trigueiros 
Barbeados pelo sol penteados pela bruma! 
Que extraístes do ar dessa coisa nenhuma 
A génesis a pluma do meu país natal.

Não sou daqui das praias da tristeza
Do insone jardim dos glaciares 
Levai minha nudez minha beleza 
E colocai-a à sombra dos palmares.

Não sou daqui.  A minha pátria não é esta 
Bússola quebrada dos impulsos