Reconciliamo-nos sempre.


1959 
Jorge de Sena
DEPOIS   DA   ESPERANÇA, 
QUALQUER   PAZ

Reconciliamo-nos sempre. 
No fundo, e às vezes nem muito ao fundo, 
a reconciliação nos espreita,
na mira da primeira fraqueza, da primeira humidade 
de lágrima ou de sexo. Ás vezes,
nem sequer disso: a poalha dispersa
que o sol define em branda agitação,
ou mesmo a própria luz num reflexo
(quanto mais breve e modesto melhor emociona)
lhe bastam.

Espreita-nos para que aceitemos, para que 
pensemos   noutra   coisa   ou  nesse  refúgio  das pequenas coisas
que é, diz-se, não pensar em nada. 
Reconciliamo-nos pois. E amamos logo tudo 
ou, mais subtilmente, fingimos que do tudo 
apenas uns sinais, algo de nobre 
e muito humilde. Assim 
como se a solidão se acompanhasse 
de muitas outras reconciliações humanas, simultâneas,
paralelas, mas não connosco, de outrém. 
Quase mais que a nossa própria nos espreita 
a reconciliação, suposta apenas, de outros.

1958

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